De um momento para o outro sou uma mulher parada, uma mulher sozinha, de mãos demasiado magras, parada na sala-de-estar: olho-me como se fosse outra pessoa, uma pessoa (digamos assim) objectiva, de (digamos assim) olhos frios, e vejo-me aqui perdida, parada, interrompendo o gesto de pegar na colher, e forçando-me a reparar nos objectos, nos seus pormenores, sombra, peso, tamanho, irregularidades, para não cair, forçando-me a mirar cada objecto, a colher os frutos o frasco os cigarros, com uma atenção que me segure, que não me deixe ir abaixo, uma atenção (os olhos abertos fingindo espanto) que não me deixe ser tomada por esta dor, esta angústia, isto que não tem nome, isto que vem sem aviso como as más notícias, aquele telefonema em que disseste acabou tudo, assim de um momento para o outro: de um momento para o outro sou uma mulher bonita, de saia curta, a sair de um automóvel e ninguém me olha, nenhum homem português se vira para espreitar a perna (o tornozelo nu) que ponho fora antes de me levantar na rua e atravessar o passeio e entrar em casa e desaparecer, de um momento para o outro ninguém me olha ou então sou eu que já não noto, desde que te foste embora é-me difícil ser olhada, é-me difícil este corpo inútil que não pára de envelhecer, e talvez por isso fuja para o elevador, para o sexto andar, e me feche sozinha em casa e gaste o tempo no apartamento enorme (por mais bibelôs), escuro (por mais candeeiros), silencioso (por mais música) a desarrumar e a arrumar tralhas, a fazer seja o que for, não interessa, para não cair em lembranças: momentos tão simples como tu em frente ao espelho do ol de entrada a ensinares-me os novos nós de gravata inventados pelos americanos, ou a escreveres sentado na mesinha ao pé da janela e de repente parando, tirando os óculos, pousando-os na mesa, sorrindo, ou à noite na luz branca da cozinha a comeres à socapa a última maçã do cesto: para não me desmanchar contra as lembranças tomo a coisa como um jogo, isto fica melhor aqui, aquilo é melhor ir para ali, o lápis na bordinha da mesa, mesmo antes de cair, a cebola na bancada debaixo da lâmpada como uma obra de arte, a bolacha no centro geométrico do prato, para não desatar aos berros ou a chorar (para não me atirar da janela) tomo a coisa como um jogo, a vida, mudar os objectos de sítio uma e outra e outra vez até o corpo se cansar e eu ser tomada pelo sono: quando foste embora o que me salvou foi a bondade dos gestos quotidianos, cortar o pão lavar a loiça escamar o peixe regar as flores arrumar os objectos, cada um no seu lugar, com muito cuidado, muita (digamos assim) concentração, num silêncio (digamos assim) diferente, ligeiramente diferente consoante se trate de uma bola ou de um biscoito, por exemplo: uma mulher de meia-idade sozinha na sala-de-estar, as mãos e os olhos demasiado magros, uma mulher de meia-idade de pé na sala-de-estar, parada, sem uma palavra, interrompida a meio de um movimento sem saber o que fazer a uma colher pequena, pequenina, muito bonita, e eu a olhá-la.Jacinto Lucas Pires/2002in: catálogo Dario Alves/Galeria Canvas/Jan 2002
I take it as a game
All of a sudden I am a motionless woman, a woman alone, with hands too thin, standing in the living room: I look at myself as if I were someone else, someone (so to speak) objective, with (say) cold eyes, and here I see myself lost, still, suspended in the act of picking up the spoon, and forcing myself to notice the objects in all their detail, their shadow, weight, size, irregularities, so as not to fall, forcing myself to gaze at each object, the spoon the fruit the bottle the cigarettes, with an attention that rivets me, will not allow me to let go, an attention (eyes open pretending surprise) that does not let me be taken by this pain, this anguish, this thing that has no name, that comes without warning like bad tidings, that phone call when you told me it was all over, all of a sudden: all of a sudden I am a pretty woman in a short skirt, getting out of a car and nobody looks at me, no Portuguese man turns to peep at my leg (bared ankle) that I put out before getting into the street, crossing the pavement, entering the house and disappearing, all of a sudden no-one looks at me, or else it’s me that doesn’t notice, since you left me it is hard to be looked at, this useless body that does not stop aging is hard to bear, and perhaps because of it I escape to the elevator, to the sixth floor, and I shut myself in at home and spend time in the huge apartment (however many trinkets), dark (however many lamps), quiet (however much music), sorting and unsorting stuff, doing things, whatever, it doesn’t matter, so as not to lapse into memories: such simple moments as you in front of the mirror in the entrance hall teaching me new tie knots invented by the Americans, or you writing, sitting at the little table beneath the window and suddenly stopping, taking off your glasses, putting them on the table, smiling, or at night in the white light of the kitchen furtively eating the last apple in the basket: so that I don’t fall apart with the memories, I take it as a game, this goes better here, that goes better there, the pencil at the very edge of the table, just before it falls, the onion on the counter top under the lamp like a work of art, the biscuit in the geometric centre of the plate, so as not to start screaming or crying (so as not to throw myself out of the window) I take it as a game, life, changing the place of objects over and over again until the body is tired and sleep overtakes me: when you left, what saved me was the kindness of everyday gestures, cutting the bread washing the dishes scaling the fish watering the flowers arranging things, each in its place, with great care, much (let’s say) concentration, in a silence (say) different, slightly different depending on whether it’s a ball or a biscuit, for example: a middle-aged woman alone in the living room, hands and eyes too thin, a middle-aged woman standing in the living room, still, without a word, suspended in mid-movement not knowing what to do with a small spoon, very little, very pretty, and I looking at it. Jacinto Lucas Pires/2002 in: catálogo Dario Alves/Galeria Canvas/Jan 2002
Nasceu em Moncorvo em Dezembro de 1940.
Em 1965 conclui o Curso Geral de Pintura da Escola Superior de Belas Artes do Porto.
Em 1973 conclui o Curso Complementar de Pintura da ESBAP.
Em 1976 entra como Docente para a Escola Superior de Belas Artes (actual Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto).
De 1984 a 1993 e de 1996 a 2000 é Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de Belas Artes.
Em 1980 e em 1986 foi subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian para visitar Bienais de Design Gráfico na Polónia, Checoslováquia e Itália.
Expõe Pintura desde 1972 e realiza a sua primeira exposição individual em 1979.
Em 1994 executa um retrato do Dr. Mário Soares.
Entre 1994 e 2006 executa os retratos dos Reitores Lúcio Craveiro, Machado Santos e
Victor Chaínho da Universidade do Minho bem como os retratos dos Reitores Alberto Amaral e
Novais Barbosa da Universidade do Porto. Executa também o retrato do Presidente do Instituto Politécnico do Porto, Luís Soares. Em 1998 faz parte do júri que escolhe a face nacional do Euro. Em 2000 obtém a aposentação como Professor Associado da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
Centro de Arte Contemporânea/Museu Soares dos Reis/Fundação de Serralves/Porto, Museu de Arte Moderna de Lund/Suécia,Fundação Calouste Gulbenkian/Lisboa, Fundação Cupertino de Miranda/Famalicão, Jornal de Notícias/Porto, Aliança Seguradora/AXA/Porto, Secretaria de Estado da Cultura/Porto, Museu de Desenho de Estremoz/Estremoz, Banco de Fomento Exterior/BPI/Lisboa, Fábrica de Chocolates Imperial/Vila do Conde, Banco Borges e Irmão/BPI/Porto, Banco Atlântico/BCP/Porto,Banco Português de Investimento/Porto, Hotel Algarve/Lagos,Reitoria da Universidade do Minho/Braga, Associação Industrial Portuense/Porto, Banco Fonsecas e Burnay/BPI/Porto, Mota e Compª/Porto, Fundação Dr. Mário Soares/Lisboa, Reitoria da Universidade do Porto/Porto, Instituto Politécnico do Porto/Porto.Camara Municipal de Moncorvo/Torre de Moncorvo, Bluepharma/Industria Farmacêutica/Coimbra
Exposições Individuais
1979• Galeria do Jornal de Notícias/Porto.
1981• Galeria Roma e Pavia/Porto.
1983• Galeria Diagonal/Cascais.
1985• Galeria Diagonal/Cascais.
1987 • Galeria EG/Porto.
1989• Galeria Leo/Lisboa.
1991 • Galeria EG/Porto.
1996• Trabalhos de casa/Árvore/Porto.
2001• Dario Alves/Museu Nogueira da Silva/Galeria da Universidade/Braga
2002• Dario Alves/Galeria Canvas/Porto.
2006 • Dario Alves/de várias formas e feitios/Galeria Sala Maior/Porto.
2010• Museu do Douro/Régua e Centro de Memória/Moncorvo.